A sexualidade feminina no século XIV: o “Conto da mulher de Bath” de Chaucer por Fábio Skalecki e Julianne Agge Auffinger.
O conto da mulher de Bath faz parte dos
vinte e quatro contos que integram o livro “Os Contos de Cantuária” do autor
Geoffrey Chaucer, escritos a partir de 1387, uma das obras literárias mais
importantes da era medieval.
Geoffrey
compôs os contos no momento em que a Inglaterra vivia a Guerra dos Cem Anos
(findada em 1453), evento que fez com que a literatura inglesa sofresse
influência dos modelos franceses. Chaucer é considerado o primeiro poeta da
literatura inglesa, com grande destaque por representar nos contos a sociedade
de época, num panorama da literatura medieval criado com ironia, crítica social
e humor.
Não se sabe muito sobre a vida do
autor, apenas que Geoffrey Chaucer nasceu em Londres em meados de 1340; seu pai
era John Chaucer, um comerciante de vinhos. Seu pai conseguiu colocar o filho
como pajem junto ao príncipe Lionel, terceiro filho de Eduardo III, com isto
nosso autor teve a oportunidade de aprender a manusear armas e a se portar com
as etiquetas da corte, aprendendo latim e francês. A informação que se tem é
que se casou com uma dama a serviço da rainha de nome Philippa de Roet, e dessa
união nasceram os filhos Thomas e Lewis e também, possivelmente, uma
filha.
Os contos do livro são contados por vinte e nove peregrinos, em uma romaria ao túmulo do Santo Tomás Beckett. Ao pernoitarem em uma estalagem ao sul de Londres, o Albergueiro propõe aos peregrinos, como distração durante a viagem, que cada um conte duas histórias na ida e na volta, na promessa de oferecer um jantar àquele que contasse a melhor história. Esse conjunto de contos com elementos de ligação entre um e outro, juntamente com o prólogo geral em que os peregrinos são apresentados um por um, compõem o livro Os Contos de Cantuária.
PRÓLOGO
Durante
todo o prólogo do conto da Mulher de Bath vemos os desejos e opiniões desta
mulher colocados em prática. Quebrando a expectativa de vermos uma personagem
apática, no “Conto da mulher de Bath” escutamos suas vontades e ações, e saímos
do âmbito idealizado pela sociedade medieval. Temos o exemplo de uma mulher
experiente, independente do jugo masculino, que controla sua vida ao invés de
ser controlada, que conhece e tem domínio sobre seu corpo, e que trata o desejo
sexual como algo inerente à vida.
Fig. 1 - Manuscrito do século
XV, “Wife of Bath”, de Chaucer’s Canterbury Tales, armazenado na Biblioteca da
Universidade de Cambridge, MS Gg.4.27. Disponível em: http://faculty.winthrop.edu/kosterj/ENGL201/chaucer3.htm
Isso nos faz observar que os
questionamentos sobre o que seria um comportamento adequado ou não acerca do
feminino no século XIV, obviamente, são diferentes do comportamento do nosso
“normal” de hoje.
Assim como em outros textos do medievo
que falam para e sobre as representantes do sexo feminino, só depois de
decorrida grande parte de sua narrativa ficamos sabendo que ela se chama Alice.
Curiosamente, porém, Chaucer faz algo incomum para os escritores de seu tempo:
é inserido, em seu prólogo geral, uma pequena biografia desta mulher.
É certo que não sabemos nada de sua
família, mas somos informados que ela provém das cercanias da cidade de Bath e
sabemos sobre seu ofício, visto que tinha experiência como fabricante de
tecidos de tamanha qualidade que superavam os produzidos nos dois maiores
centros do comércio têxtil medieval. Alice vai contra todo o ideal feminino
disseminado não apenas pelos homens das ciências, mas principalmente pelos
clérigos que detinham o poder de ensinar a palavra de Deus e ensinar às
mulheres o caminho em direção à santidade.
CONTO
O Conto da Mulher de Bath narra a história de um jovem cavaleiro
condenado à morte por ter estuprado uma jovem donzela, a rainha, mediante as
súplicas do mesmo, promete poupar sua vida se este responder a seguinte
pergunta: O que as mulheres mais desejam? E dá um prazo de um ano e um dia para
que ele encontre a resposta.
O rapaz sai pelo mundo em busca do que
as mulheres mais desejam, mas não encontra resposta satisfatória, desesperado
por que o prazo de um ano estava acabando, ele encontra uma velha que lhe
promete dar a tal resposta, com a condição de que atenda ao primeiro desejo
dela após se livrar da morte, o rapaz concorda e a velhinha lhe conta a
resposta.
O cavaleiro volta à rainha e diz
“Majestade, de modo geral”, disse ele, “o que as mulheres mais ambicionam é
mandar no marido, ou dominar o amante, impondo ao homem a sua sujeição”
(CHAUCER, 2014, p. 115, tradução de Paulo Vizioli). Com a resposta o rapaz
escapa da morte e precisa atender ao primeiro desejo da velha como prometido, e
o pedido é que se case com ela.
O jovem infeliz e desconcertado se casa
com a velhinha, mas se sente triste com o matrimônio pois sente repulsa pela
esposa, fato muito bem ilustrado na Gravura em madeira feita por Edward Coley
Burne-Jones em 1896.
Fig. 2- Gravura
em madeira “The Tale of the Wife of Bath”, de Sir Edward Coley Burne-Jones,
1896. ́Disponível em: http://www.victorianweb.org/painting/bj/graphics/2.html
Vendo a tristeza do
rapaz a velha então lhe propõe:
“Escolha agora”,
concluiu ela, “uma destas duas coisas: ou ter em mim uma mulher feia e velha
até o fim de seus dias, mas humilde, fiel e sempre disposta a agradá-lo a vida
inteira; ou ter em mim uma esposa jovem e atraente, correndo o risco de ver-me
receber constantes visitas em sua casa... ou, conforme o caso, em algum outro
lugar. Vamos lá, escolha o que prefere.” (CHAUCER, 2014, p. 117, tradução de
Paulo Vizioli).
E o jovem prefere que a velha com sua
sabedoria escolha o que será melhor para os dois, a velha fala: “Como
você permite que eu escolha e decida como quiser”, “não estaria reconhecendo
que quem deve mandar sou eu?” e o rapaz responde:“Sim, claro, meu bem”,
respondeu ele. “Acho melhor assim” (CHAUCER, 2014, p. 118, tradução de Paulo
Vizioli).
Após
o rapaz ter assumido que a mulher é quem deve mandar no matrimônio, a velha se
transformou em uma moça linda e jovem e os dois viveram felizes para sempre.
O conto termina com a seguinte citação:
Que Jesus Cristo mande a nós também maridos dóceis, jovens e fogosos na cama... e a graça de podermos sobreviver a eles! E, por outro lado, encurte a vida dos homens que não se deixam dominar por suas mulheres, e que são velhos, ranzinzas e avarentos... Para esses pestes Deus envie a Peste! (CHAUCER, 2014, p. 118, tradução de Paulo Vizioli).
A MULHER NA ERA MEDIEVAL
Em pleno século XXI dissemina-se
erroneamente um conceito quanto à história das mulheres medievais. Tal conceito
não corresponde à realidade, pois, os mesmos são baseados em mitos, em que a
mulher tem a imagem de frágil e oprimida, uma vez que vemos donzelas em
perigo que são libertadas por seus cavaleiros.
As histórias medievais nos mostram que
a mulher depende totalmente da força viril do homem, entretanto, são romances e
contos que não refletem a realidade. De acordo com Macedo (OLIVEIRA, 2016,
p.12), “as mulheres distinguiam-se entre si pela posição que ocupavam na
sociedade medieval, pela atividade que desempenhavam, pela faixa etária, pela
instrução, por suas opções e ideais de vida”.
As mulheres na idade média, além de exercerem o papel tradicional ditado pela sociedade, de mães, esposas e filhas, também ocupavam outros diversos papéis sociais.
Os registros documentais da Paris do século XII apresentam mulheres médicas, professoras, tintureiras, copistas, encadernadoras, arquitetas, existiam algumas em papéis de liderança como rainhas e abadessas. Tinham também, direito ao voto, forças sociais influenciaram o papel da mulher nesse período, entretanto, a força que guiava toda a população medieval era a igreja Católica Romana, que tinha predomínio cultural e religioso sob mentalidade popular, influenciando a cultura na idade média, com o ensino da cultura latina, preservação da Arte e da escrita e uma administração que se estabelecia por um estatuto criado após a queda do império romano.
Outro aspecto importante a se observar
acerca das mulheres no medievo, é que existiam modelos comportamentais
pré-estabelecidos pela sociedade como apropriados ao feminino. De acordo
com Santo Agostinho como cita o autor Klapischzuber (apud OLIVEIRA, 2016,
p.13) teria sido “para ajudar o homem na reprodução e na multiplicação da
espécie, que Eva foi criada depois dele e da carne dele”.
Durante sua narrativa Alice utiliza
vários exemplos bíblicos, da vida do rei Salomão aos ensinamentos do apóstolo
Paulo, para argumentar sobre a legitimidade de contrair novas núpcias, a cada
vez que fica viúva. Esta atitude nos chama a atenção, pois usualmente as
senhoras viúvas ou terminavam seus dias vivendo em castidade e administrando os
bens de seus esposos ou se encerravam em mosteiros.
Nossa personagem afirma com segurança:
Dou graças a Deus que tive cinco maridos; e bem-vindo seja o
sexto, venha lá quando vier! Como não pretendo fechar-me numa vida de castidade
só porque meu marido deixou este mundo, é natural que venha logo outro cristão
e me despose, pois, como afirma o Apóstolo, sou livre para casar-me, em nome de
Deus, quantas vezes me aprouver. (CHAUCER, 2014, p. 389, tradução de Paulo
Vizioli).
Astutamente, a Mulher de Bath se
utiliza da questão da virgindade para justificar seus atos. Afirma que o
apóstolo Paulo aconselhou-a às mulheres, e que aconselhar não significa
ordenar, ou seja, estaria a critério das mulheres. Questiona também, sobre a
finalidade dos órgãos humanos de reprodução:
Além disso, gostaria que me dissessem: qual a finalidade dos órgãos de
reprodução? E por que foram formados desse modo tão engenhoso? (...) Digam o
que quiserem — como dizem mesmo por aí —, que servem para a excreção da urina,
ou então para distinguir fêmea de macho e nada mais... não é o que dizem? A
experiência, contudo, prova que não é bem assim. Espero que os doutos não se
zanguem comigo, mas, na minha opinião, eles foram feitos para as duas coisas,
isto é, para o serviço e para o prazer da procriação (dentro do que a lei de
Deus estabelece) (CHAUCER, 2014, p. 391, tradução de Paulo Vizioli).
É ilustre esse discurso vindo de uma
mulher, ainda que por intermédio da escrita de um homem, pois ela desmistifica
totalmente o ideal cortês, nos mostrando uma personagem mais próxima da nossa
realidade. Vemos que existe uma facilidade em falar sobre o corpo, uma grande
liberdade para o século XIV, pois, a personagem não questiona as estruturas que
definem os papéis sociais entre homens e mulheres.
Alice fala do prazer da procriação e
afirma que quer ver sua existência frutificar nos atos do matrimônio, ou seja,
o fato de saber como utilizar as passagens bíblicas para validar o prazer pelo
ato sexual em si, nos mostra certa astúcia da mulher em conseguir o que
quer.
Se porventura a classificássemos, a
mesma poderia se enquadrar no perfil de “mulher ardilosa”, segundo Rivair
Macedo (2002) em seu livro A Mulher na Idade Média. Ela é astuta, vaidosa, e
sabe utilizar as palavras a seu favor para conseguir qualquer coisa.
Contudo, por meio desta personagem
percebemos que a sexualidade feminina não desapareceu na Idade Média, um
exemplo disso é a relação da mulher com seu quinto e último marido, bem mais
jovem que ela - no mínimo vinte anos - que poderia ter sido motivo de
desconforto ou estranhamento. Visto que era uma relação fadada a não gerar
filhos, entretanto, baseada no ideal de prazer sexual, sendo lícito por estarem
casados, Alice traz genialidade a esse conto, pois a mesma encontra brechas
dentro do cristianismo, deixando com que ela exerça sua sexualidade nem
contrariedades.
EROTISMO E SENSUALIDADE NA LITERATURA
A Idade Média advém de uma cultura
patriarcal: os papéis das mulheres eram, portanto, vistos rigidamente,
biblicamente determinados. Historicamente, a sexualidade humana sempre se
constituiu em tabus sociais, nos quais a repressão às mulheres foi muito maior.
A nossa personagem, possui características que a diferenciam de outras mulheres
retratadas na literatura, sua fala livre sobre temática subjugadas, como
desejo, erotismo e sexo.
Em alguns períodos da história, na era
da inquisição, por exemplo, nos séculos XIII e XIV, o desejo sexual era visto
como algo satânico, as mulheres que se utilizassem da sedução eram tidas como
tentações do demônio. Ou seja, sexualidade nunca deixou de ser um assunto
delicado a se tratar, apesar de todo progresso intelectual, técnico e
científico pelo qual a sociedade vem passando ao longo dos anos, falar de sexo
ainda causa constrangimento e muitas famílias preferem evitar o assunto.
No que diz respeito à sexualidade
feminina, a repressão foi mais intensa, no final do século XIX, o cenário tido
é o de uma sociedade emperrada em valores morais repressores e conservadores,
reflexo de um discurso religioso de séculos atrás, em que o ato sexual seria
estritamente reservado e tido como um mal necessário à procriação.
Hoje consideramos “sexualidade”, ou
seja, uma mescla de fatores biológicos, sócio- culturais, e psicológicos que
agregam elementos como desejo, fantasias, prazer, orgasmo, satisfação, dentre
outros. A busca pela perfeição espiritual exclui o prazer que o tocar dos corpos
proporciona e os ensinamentos cristãos exaltam o celibato e a virgindade como
as mais elevadas formas de vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nenhum momento Chaucer se mostra a
favor ou contra o comportamento de sua personagem, e parece sugerir que o julgamento
fique a cargo do leitor de sua obra. Entretanto, não podemos deixar de imaginar
que o conto possa ter chocado parte de sua sociedade, mas que também à sua
maneira Chaucer possa ter ajudado no florescimento de algumas mulheres que
viveriam da escrita. É importante destacar que o prólogo do conto da Mulher de
Bath é uma narrativa mais longa do que o próprio conto narrado pela
personagem.
Fica evidenciado que, ao contrário do senso comum, a Idade Média foi um período em que a mulher foi bastante valorizada. Por meio da Literatura, entendida como instrumento de grande relevância para compreensão das dinâmicas sociais, pudemos conhecer essa personagem que contribuiu em seus argumentos estratégicos que justificavam o prazer sexual.
O ser humano fica aprisionado no
próprio prazer, gerando o que se pode chamar de culpa sexual, principalmente
nas mulheres que até hoje de certa forma são mal vistas por se masturbarem,
exporem suas fantasias, de ter prazer de modo geral, diferentemente do homem
que sempre foi livre culturalmente. Alice traz essa liberdade de modo legítimo
e dentro das “leis” cristãs, de modo irreverente e autêntico.
REFERÊNCIAS
CHAUCER, Geoffrey. Os Contos de Cantuária. Apresentação e
tradução de Paulo Vizioli. São Paulo, 2014. Disponível em:<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5002302/mod_resource/content/1/Os_Contos_de_Cantuaria.pdf>. Acesso em 12 de
fev. 2021.
MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Cotexto, 2002.
MARTON, Fábio. A Mulher Medieval. Super Interessante 2020.
Disponível em: <https://super.abril.com.br/historia/a-mulher-medieval/>. Acesso em 28 de
fev. 2021.
OLIVEIRA, Beatriz dos Santos. A Mulher de Bath nos Contos de
Cantuária: reflexões sobre o feminino e o controle do corpo no medievo e seus
ecos na contemporaneidade. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura. Rio de Janeiro, 2016.
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