A arte hibérnico-saxã e o Irish Revival

 Por Constantino Roditis Ritchie

Livro de Kells, (fólio 32v), Cristo Entronizado. Digitalizado em Treasures of Irish Art, 1500 B.C. to 1500 a.D.

A arte hibérnico-saxã, também conhecida como arte insular, é o nome dado às produções artísticas do período pós-romano da Irlanda e da Grã-Bretanha, que começa aproximadamente em 600 d.C. (algumas fontes sugerem que o período começa antes) e vai até 1000 d.C., sendo que o século VIII seria o mais preeminente. O termo “hibérnico-saxão” se refere ao nome dado pelos gregos à Irlanda, então chamada de Hibernia, e da interação dos irlandeses com os anglo-saxões do sul da Inglaterra durante o século VII. Pode ser chamada também de arte insular, embora isso insinue uma dissociação do resto da Europa, o que não é verdade; o termo “hibérnico-saxão”, assim, evita imprecisões, pois é difícil de determinar a origem das obras desse estilo, que flutuam entre a Irlanda, Escócia e Nortúmbria (norte da Inglaterra). 

Os irlandeses possuíam meios culturais próprios da sua “pré-história” e quando a fé católica se estabeleceu na Irlanda, e um ou dois séculos depois na Inglaterra, a Igreja apropriou-se desse estilo, e os nativos se tornaram grandes seguidores, produzindo livros com adornos bem elaborados dentro do seu estilo preexistente. Mais tarde, foram escritos aqueles manuscritos ricamente decorados, que mais do que qualquer outra coisa, iluminam a “Idade das Trevas” como comenta Nordenfalk (1977, p. 7). Os artífices nativos dos Celtas e dos Anglo-saxões foram propulsionados pela cristandade, preservando suas tradições e até desenvolvendo ainda mais seus estilos; o livro se tornou, então, um veículo disseminador da arte. O monasticismo foi estabelecido na Irlanda e a conversão foi atribuída a São Patrício; nessa época, na Inglaterra não havia sequer um monastério. A Irlanda se tornou, então, um país de escritores, que copiavam manuscritos e pergaminhos vindo do continente e depois desenvolveram sua própria prática, que depois foi adotada pelos ingleses. Em 565 d.C., um irlandês devoto, conhecido hoje como São Columba, na época chamado de Columcille, foi expulso de um monastério na Irlanda e foi em missão ao oeste da Escócia. O território era então parte do Reino da Dalriada, e constituiu um importante monastério numa ilha da região, depois chamada de Iona, que serviu para a produção de importantes manuscritos. O mais famoso destes é o Livro de Kells (800 d.C.) que foi, possivelmente, iluminado neste monastério. Serviu também para a catequização dos reinos dos Pictos, povo celta do leste da Escócia, e também para os Anglo-saxões pagãos que se estabeleceram nas terras altas. Após a morte de São Columba (597 d.C.), missionários foram enviados de Roma para estabelecer uma cristandade com influências romanas, porém não tiveram sucesso em sua missão devido aos conflitos contra os pagãos da Inglaterra. Isso resultou no exílio do herdeiro ao Reino da Nortúmbria (norte da Inglaterra) em Iona, onde foi educado sob influência do cristianismo celta; ao retomar seu reino sob a cruz, junto a um monge de Iona, formou um novo monastério na ilha de Lindisfarne, que preservou suas raízes irlandesas mesmo sendo um monastério propriamente anglo-saxão. Muitos ingleses da época estudavam em Iona, e sob essas influências é possível que o Livro de Durrow (680 d.C.), que foi feito em Iona, tenha sido escrito por anglo-saxões devido a alguns elementos não irlandeses presentes no manuscrito.
Livro de Durrow, (fólio 125v), mostrando uma “página-tapete”.

Como dito anteriormente, o Livro de Kells pode ter sido começado em Iona e depois levado para a abadia de Kells, devido às invasões vikings que aconteceram em Lindisfarne, que preocupavam os monges. É aceito que Giraud de Barri, eclesiástico e historiador do País de Gales, descreveu um livro idêntico ao Livro de Kells em sua Topographia Hibernica: ele fala como nunca viu algo tão belo e conta sobre sua coloração brilhante, variedade infinita de figuras e elaborados entrelaçados ornamentais — declara que a decoração do manuscrito pertence à perícia de um anjo, não a de um humano. O manuscrito hoje compreende 340 fólios, 680 páginas. “A complexidade de seus designs destemidos; a varredura limpa e inabalável da espiral arredondada; as ondulações rastejantes de formas serpentinas, que se contorcem em profusão artística em todo os labirintos de suas decorações; o minúsculo forte e legível de seu texto; a singularidade de seu retrato impressionante; a reverência incansável e trabalho paciente que o trouxe à existência; todos combinados conceberam o Livro de Kells”, comenta Sullivan (1920, p. 5) sobre a arte do Livro de Kells, que de fato dá um novo significado para a iluminação de manuscritos.

Livro de Kells, (fólio 7v), A Virgem e o menino.

Esse fólio do livro contém uma das primeiras representações da Virgem Maria. Apesar de que viveu na pobreza, a Virgem é retratada em trajes dignos de uma imperatriz, sentada sob um trono de ouro, decorado com jóias incrustadas, do tipo encontradas na metalurgia irlandesa da época; atrás do encosto do trono há uma cabeça de um leão, decorado no estilo celta. Em sua volta, quatro dos sete arcanjos substituem cortesãos. Esta representação evidencia que as igrejas sob influência do São Columba promoviam o culto à Virgem Maria no tempo em que o Livro de Kells estava sendo feito.

Fólios como este expõem a densa e soberba decoração da arte hiberno-saxã. O estilo cria uma nova forma de juntar manuscritos e decoração ornamental. Ao invés de ficar separada do corpo do texto, a inicial é desenhada nele, as letras são também exibidas, mas em uma escala gradualmente decrescente. Esse efeito de “diminuendo” foi uma invenção que se tornaria parte da decoração de livros na arte hiberno-saxã. 

As iniciais vistas nestes manuscritos são concebidas como formas elásticas; a cinética do seu contorno cria linhas em espiral que por sua vez geram novas curvas. Ocasionalmente as letras terminam em uma cabeça de um animal. Em seu ritmo livre de curvas e contornos, as iniciais estão ligadas à tradição da cultura La Tène, que foi uma cultura da Idade do Ferro, conhecida por ser uma arte pertencente aos celtas, que é vista também em obras trabalhadas em metal e esculturas em pedra. Na metade do século VII é introduzido um novo tipo de ornamento: o entrelaço. 

Livro de Kells, (fólio 34), mostrando detalhes elaborados de um entrelaço.

Na Inglaterra é encontrado o uso do entrelaço combinado com a cabeça de animais em alguns objetos de Sutton Hoo, local de escavação arqueológica, que datam até o primeiro quarto do século VII. Também é visto na arte bizantina e italiana.

O entrelaço é a princípio um ornamento para preencher o fólio, especialmente nas bordas. A decoração vista no fólio 34 é um exemplo da virtuosidade que ultrapassou a arte La Tène vinda do continente. Tão certos de suas intenções eram estes artistas que tudo que vinha do continente era radicalmente apropriado para o estilo insular. Os escribas não hesitavam em trocar a escrita por ornamento, as “páginas de tapete” vistas nos manuscritos que eram usadas para aumentar seu esplendor propõem que os escritores tinham uma predileção por esse tipo de decoração livre. Os artistas não tentam representar profundidade na pintura de manuscritos, eles dão ênfase ao brilho e à cor da superfície. 

A religião Cristã desencorajava os enterros onde os itens pessoais eram colocados junto ao caixão, por isso a maioria das obras feitas em metal que conhecemos hoje vêm da região sul da Inglaterra, onde os Anglo-Saxões, pré-cristãos, enterravam seus bens durante o sepultamento. Porém, são encontradas relíquias do cristianismo celta como o Relicário de Monymusk, feito de madeira e metal, caracterizada pelo trabalho insular gaélico e “picto”, assim como também tem influência da metalurgia anglo-saxã, que é dita ter sido feita no monastério em Iona. 

O Relicário de Monymusk, início do século VIII, National Museum of Scotland, CC BY-SA 4.0.

É um exemplo antigo de caixas que ficaram populares ao redor da Europa posteriormente, que talvez foram influenciadas pelo estilo insular. Era dito conter as relíquias do São Columba, hoje está vazia. Aos olhos modernos a forma se assemelha a uma casa, mas a intenção na época era de que se assemelhasse a um sarcófago ou uma igreja.

Os trabalhos em metais são individuais: as obras não seguem um modelo, e as técnicas são variadas e ricas em qualidade. Os designs vistos nessas peças de metal se assemelham aos elementos vistos em manuscritos, e quase todas as técnicas que vemos na metalurgia artesanal podem ser encontradas na Arte Insular. 

Broche de Tara, século VIII, National Museum of Ireland. Foto: Johnbod, CC BY-SA 3.0.

O legado da Arte Insular não está exatamente ligado ao estilo e suas formas, mas ao afastamento fundamental dos modelos clássicos de adornamento, seja em manuscritos ou em outros tipos de arte. A maneira pela qual os escribas decidem decorar seus manuscritos exacerbadamente e descontroladamente, sem dar forma às figuras que compõem uma página, se torna um aspecto da arte medieval posterior, especialmente na Arte Gótica, onde o estilo insular é dificilmente usado, como na arquitetura. Um claro exemplo da influência da Arte Insular é vista nos manuscritos Carolíngios, mesmo que estes estejam tentando copiar o estilo Imperial de Roma e do Bizâncio.

Outro exemplo da influência da Arte Insular pode ser encontrado no Irish Revival. Irish Revival, ou Irish Literary Revival, também conhecido como The Celtic Twilight (O Crepúsculo Celta), foi o movimento artístico de orientação nacionalista da Irlanda, assim como nas outras nações “celtas” (Escócia, País de Gales, Ilha de Man e algumas partes da Inglaterra), com o intuito de resgatar as raízes celtas e reintroduzi-las nas artes neste período, que vem do século XIX tardio e começo do século XX. O movimento do Celtic Revival teve bastante vigor na Irlanda, que resistia há muito tempo à coroa inglesa, mas nesse período que iria culminar em revoltas num futuro próximo, o sentimento nacionalista percorria pelo país, o que gerou o movimento do Irish Revival.

Esse renascimento é mais conhecido pelo seu movimento literário em que destaca William Butler Yeats, escritor irlandês que criou sociedades de literatura em Dublin, Irlanda, e em Londres, Inglaterra, por onde transitava. O intuito era restaurar o interesse pelo passado da Irlanda. Yeats escreveu uma série de livros que contém contos e folclores irlandeses, e em 1893 publicou The Celtic Twilight, uma coletânea de histórias da tradição irlandesa, cujo título se transformou no apelido dado ao Irish Revival

Porém, o movimento não apenas se restringiu à literatura, mas teve participação nas artes visuais também, na forma do Arts and Crafts, que foi uma corrente internacional na decoração e belas-artes que foi desenvolvida mais amplamente na Grã-Bretanha. Na Irlanda, o movimento foi popularizado pelo uso de vitrais coloridos, assim como na Escócia, com artistas como Harry Clarke e Evie Hone; também contou com a participação das irmãs de Yeats, Elizabeth e Lily Yeats, que junto a Evelyn Gleeson, fundaram a Dun Emer Guild (“Guilda do Forte de Emer”), que foi um estúdio de produção têxtil. 

Ireland’s Memorial Records, Harry Clarke, 1923.

Esta folha de rosto é um exemplo do uso da tradição irlandesa, em que Clarke produziu essas ilustrações em um memorial aos irlandeses que morreram na Primeira Guerra Mundial. Vemos aqui o uso do entrelaço, que se assemelha ao que se encontra nos manuscritos da Arte Hiberno-Saxã, apesar de que Clarke não tem o intuito de simplesmente copiar o estilo; ele se apropria da identidade celta para construir um estilo próprio. 

Harry Clarke, assim como Evie Hone, fez parte da An Túr Gloine (“A Torre de Vidro”), um estúdio cooperativo que produzia vitrais de representação cristã. O estúdio é associado ao Arts and Crafts, mas também é associado ao revivalismo irlandês. A Capela de Honan, em Cork, contém obras feitas por Harry Clarke junto a outros artistas do An Túr Gloine. A pequena igreja foi construída no estilo Hibérnico-românico, e sua arquitetura evoca o estilo insular. O interior da capela é conhecido por ser projetada nas tradições irlandesas: ela contém um piso de mosaico, trabalhos em metal e esmaltes, tecidos litúrgicos e altares, bem como dezenove vitrais. Onze desses vitrais foram feitos e instalados por Harry Clarke, e o resto por membros do estúdio. A construção da igreja foi financiada por Isabella Honan (1861-1913), membra de uma família rica de Cork, e iniciada por John O’Connell, um membro importante do Celtic Revival e Arts and Crafts, que supervisionou o projeto e o comissionamento de suas esculturas externas e a decoração interna.

Santa Gobnait, Harry Clarke, 1916. Foto: Fergal of Claddagh. 

Esta janela representa Santa Gobnait, uma mulher irlandesa nascida no século V. Seu braço está estendido em uma pose influenciada pelas feições do Retrato de uma senhora em Amarelo (c. 1465), de Baldovinetti, e por retratos de Donatello, escultor italiano. Enquanto outras janelas da capela foram concluídas por membros do estúdio trabalhando a partir de seus designs, foi Clarke quem exclusivamente finalizou este vitral. Gobnait é mostrada em meio perfil com um rosto pálido, magro e ascético; seus traços irlandeses são inconfundíveis. Em volta de seu painel há abelhas e o fundo tem hexágonos em forma de colméia por ser padroeira das abelhas — as abelhas tinham um significado importante no folclore celta. Virginia Teehan, historiadora irlandesa, diz que o vitral é “caleidoscopicamente suntuoso” e que é “cheia de alusões à história da arte, muitas vezes inesperadas” (2005, p. 181).

Os artistas foram fortemente influenciados pelo clima empresarial da época e estavam comprometidos a melhorar a arte aplicada. O Arts and Crafts na Irlanda, assim como na Inglaterra, endossava o valor do artesanato em oposição à industrialização, produção em massa e ecletismo, e o movimento estava, sobretudo, ligado às reformas, sendo na arte visual, na literatura, na música ou até mesmo no sistema econômico. O impacto positivo do Irish Revival foi notado por comentaristas. Uma preocupação de O’Connell, organizador da construção da Capela de Honan,  era de que o movimento não devia servir às formas antigas: por mais que a arte do movimento tivesse influências da Arte Insular, não devia simplesmente derivar dela. O’Connell declara que a arte deve ser a expressão da tendência do momento. Essa tendência, na época, seria o forte nacionalismo irlandês que fez com que a Arte Insular ressurgisse para criar uma nova identidade nacional, alimentando assim as ideias que culminaram com o processo da independência irlandesa.














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