Por Cristiane Santos Gomes, Guilherme Romão Silva, Nahyara da Silva Ramos e Rafael Santos Coiro
Imagine que você está em uma floresta e observa um bloco de pedra entalhado ou pintado com imagens. Quem é o artista? O que essas imagens representam?
Agora, imagine-se preso ao trânsito de uma cidade e pela janela do ônibus você vê um muro com um grafite ou pichação e se pega fazendo as mesmas perguntas: Quem é o artista? O que ele quis dizer com aquelas imagens?
Ficamos surpresos ao perceber que as motivações por trás dos dois registros podem ser as mesmas e que podemos pensar a arte rupestre para além do suporte e dos materiais, pela perspectiva de quem as fez ou ainda faz, sua relação com o espaço e os discursos representados através dos signos. E sim, este tipo de arte ainda está viva e isso não deveria ser um espanto.
História
Convenciona-se pensar a arte rupestre como a produção de desenhos em pedra durante a pré-história. E que, apesar de ter seu recorte temporal questionado, trata-se do maior período da história da humanidade sem registro escrito. Pode-se dizer que não havia a intenção de criação de arte - do modo como definimos hoje - e sim de produção de registros.
Em resumo, podemos identificar os seguintes tipos de registros rupestres:
1. Mãos impressas nas paredes – seja em negativo, com pigmentos soprados sobre as mãos, ou em positivo, a mão entintada sendo usada como carimbo. Esses registros são índices: uma mão que nos diz “alguém esteve aqui”, como os rastros e pegadas deixados na terra por um animal.
2. Representações de animais em paredes de maneira mais realista/naturalista, evocando semelhanças com o real. Essas imagens são signos, tão presentes na nossa cultura, imersa em imagens. Uma das teorias indica que essa essa ação, de alguma forma, tinha o intuito de criar algum tipo de vantagem mística, o que os auxiliaria na caça e, consequentemente, garantiria a sobrevivência e a denomina “arte magia”, por outro lado também pode-se pensar na conexão do homem com os animais sagrados, seus ancestrais, aqueles que, em rituais xamânicos, os protegem, dão força.
3. Com a domesticação de animais e o início da agricultura, convenciona-se que muitos grupos humanos deixaram de ser nômades e passaram a constituir moradia. Após essa mudança social e comportamental, o homem não via mais a necessidade de desenhar os animais com o intuito de obter vantagem em caçadas, mas passou a registrar o seu cotidiano, como eventos ritualísticos, rituais de caça, plantio, colheita, etc. Essa fase leva o nome de “desenho em movimento”.
4. Uma das capacidades do ser humano é a comunicação através da representação. Assim como em outros sítios, podemos encontrar a repetição de caracteres e desenhos completamente abstratos na Cordilheira de Atures (Venezuela). Esses desenhos abstratos são símbolos e seu significado é uma convenção entre os membros da mesma tribo ou de tribos vizinhas, como um rudimento de escrita. O fato de não entendermos esses símbolos hoje não quer dizer que eles não tenham uma mensagem ou que não comuniquem graficamente uma ideia (ou várias).
Arte e comunicação
Para entender melhor o conceito de arte rupestre vamos começar pela etimologia da palavra RUPESTRE. Essa é uma palavra originada no latim rupes, que significa rochedo. Dessa forma “Arte Rupestre” seria toda aquela cujo suporte é a rocha, pedra, parede, acidente geográfico, caverna: um volume sólido marcado pelas ideias humanas através do uso de instrumentos pontiagudos (raspagem, gravura fina, gravura profunda, picoteado) ou da aplicação de pigmentos criados através de fluidos e excrementos humanos ou de animais, sementes e minérios moídos, resinas vegetais... As técnicas e os materiais vão variando com o passar do tempo.
Já ARTE é um termo que vem do latim ars e do grego téchne, mas qual o seu significado na "prática"? Fazer arte é produzir, criar, tirar uma ideia ou um conceito da obscuridade através do talento e do trabalho. É dar fisicalidade a uma ideia, transformar um conhecimento em objeto. A definição é bastante abrangente, mas foi reduzida ao extremo por filósofos, historiadores, museólogos e outros detentores do conhecimento até chegar a uma pergunta: Isto é arte?
Com a arte rupestre identificamos o nascimento da abstração, da linguagem, da escrita, da religião e da ciência. Através da visão, surge o desejo de representação, já que através dela somos capazes de perceber e entender o mundo. A imagem possibilita a transmissão de mensagens, dentro da nossa comunidade, entre comunidades ou para as pessoas que ainda virão. Como produzimos imagens? Através da capacidade de abstração pensamos isoladamente sobre um ou mais elementos do todo, transformando em linhas a realidade tridimensional que nos rodeia ou a nossa relação com a memória, experiências religiosas ou sensações, seja através de imagens de cunho realista ou de imagens não figurativas. Os registros rupestres marcam os primeiros movimentos do homem em direção a sistemas de representação do mundo e a expressões de arte.
“A linha geométrica é um ser invisível. É o rastro do ponto em movimento, portanto, é o seu produto”. A partir do raciocínio de Wassily Kandinsky, é fácil imaginar os primeiros caçadores percorrendo com o dedo as formas de um animal, fazendo um contorno mental de suas formas e criando... linhas! Quando o homem transfere esse movimento para as paredes, a tridimensionalidade passa a ser expressa por esse contorno: o homem abstrai as formas e a partir de seu conhecimento empírico do mundo, cria pontos, linhas e formas para “aprisionar” na pedra os animais, a si mesmo e os objetos que estão em volta.
A arte rupestre, por ter sido produzida por povos que a primeira geração da antropologia classificava como povos primitivos ou selvagens, muitas vezes é reduzida e considerada primitiva. Hoje, a arte produzida pelos povos originários ainda é marcada, muitas vezes, por esse rótulo eugenista e colonial.
Todas essas pinturas e gravações na pedra, ao contrário do que se pensa, são construções elaboradas, feitas com técnicas relativamente sofisticadas que podem ser expressões de relação com o espaço, a vida, a religiosidade ou representar comunicação entre grupos humanos, mesmo através dos tempos: não é raro encontrar pinturas feitas em camadas, com milênios de diferença entre um registro e outro. Passado, presente e futuro não existem para todos os povos como nós convencionamos. Ocidentalizando e usando como referência o Pierre Lévy (LÉVY, 1996, p. 21), quando falamos em virtualidade para falar da maneira de cada grupo se relacionar com o tempo e o espaço, e afirmar que nem tudo é ato e presença, e a forma de viver tempo e espaço é própria de cada cultura, a nossa, simplória, que segue a convenção cronológica e baseia-se no conceito inventado de real, mas muitos povos não pensam do mesmo modo e transitam pelos espaços dos ancestrais, que consideramos fora do tempo ou do real. A arte rupestre é um registro impresso através da ação do homem movido pelo desejo de representar, contar ou performar seres superiores: ancestrais, avós, deuses e experienciar transe, êxtase, consciência…
Um mundo sem barreiras
Moradia transitória, espaço de passagem, espaço de ritual... Os locais que abrigam as expressões rupestres podem ter diferentes campos de significado. Só precisamos lembrar que, ao pensar no espaço geográfico, temos que ter em mente que as fronteiras impostas pelo colonialismo e apreendidas por nós através da educação formal não fazem sentido para a maioria dos povos. Assim como o tempo, as geografias perpassam diferentes virtualidades: campos subjetivos, espirituais e materiais se cruzam, se ampliam, criam ligações, se expandem e contraem na medida em que os povos transitam, se dividem para formar outros grupos, e se relacionam com indivíduos de outros povos.
As gravuras apresentadas aqui estão em pedras na região da cordilheira de Atures, no último ponto navegável do rio Orinoco, na Venezuela. Um local de passagem de vários grupos, rico em manifestações pictóricas gravadas nas rochas (também chamados petroglifos). Algumas dessas inscrições estão submersas.
A intensa história de contato entre os povos do Alto Rio Negro Pré-Histórico/Amazônia, as Guianas e os Llanos a oeste, durante o período colonial e a barreira física formada por esses petroglifos, levou à sugestão de que essas imagens são um núcleo natural de interação (OJER, 1960; GÁSSON, 2002). O etnólogo KOCH-GRÜNBERG (1907) testemunhou gravuras sendo executadas na região Vaupés (Venezuela), pelos Maku-Guariba. Ele postula que o corpus artístico pré-colombiano pode indicar onde as interações entre diversos grupos de pessoas ocorreram ao longo do rio, sugerindo que a troca ocorreu através das principais vias navegáveis nesta vasta região (RILIS, 2017). As gravuras, por terem motivos idênticos ou semelhantes, podem ser incluídas no conceito de incorporação.
As várias mensagens da Arte Urbana
Traçamos um paralelo entre arte rupestre e os grafites da Venezuela urbana, mais especificamente relacionando o trabalho do artista Flix Abellin às manifestações pictóricas na Cordilheira de Atures.
O trabalho de Abellin traz expressões artísticas que variam desde a representação realista até o geometral ,e identificamos nesses grafites tanto características dos povos originários da região e que por ali transitaram quanto cicatrizes do período colonial, como a referência aos negros sequestrados que ali foram escravizados, o que gera uma arte única, de acordo com sua materialidade histórica.
No século XVI, chegaram os primeiros negros na condição de escravos vindos da região do golfo da Guiné, território que compreende hoje Gana, Togo, Benim, Nigéria... Estima-se que até o século XIX tenham sidos deportados para o continente americano cerca de 14 milhões de negros na condição de escravos, simultaneamente cerca de 80% dos povos originários da América Latina foram exterminados pelos colonizadores europeus, tal crime deixou cicatrizes profundas na história dos países latinos, marcas culturais, sociais e econômicas. Sendo assim, através da dialética, é possível entender a influência dessas etnias nas manifestações culturais contemporâneas que as exaltam e homenageiam em contraponto à cultura que descende dos moldes coloniais.
Na arte urbana contemporânea, observamos que as técnicas e os materiais podem ser diferentes, mas o suporte e a intenção são os mesmos. O grafite surge em 1970, nos EUA, e vai além da premissa única da vontade de se manifestar ou deixar o registro de que “estive por aqui”. Enquanto contracultura, ele surge como uma resposta radical e controversa, em relação aos padrões usuais, à cultura hegemônica. Ao usar sprays, rolos ou até mesmo cilindros de extintores, o grafite e o picho chegaram para mostrar que os espaços das cidades pertencem a todos e que a arte e as suas mensagens precisam ser vistas e estar acessíveis a qualquer um.
Ao ocupar um local público, a arte urbana interage e democratiza o acesso à arte, tirando-a da reclusão em museus e galerias de artes, onde é acessível apenas para uma pequena parcela da população. Tal qual a arte rupestre, o grafite fica sujeito às intempéries e às ações dos homens. A arte urbana utiliza o ambiente ao redor como suporte, porém, também carrega o poder de interagir com a sociedade como um todo e de uma maneira própria. Seja através de mensagens explícitas ou de forma mais subjetiva, o grafite denuncia a lógica capitalista de consumo ao alterar o cenário urbano, que em sua maioria é ocupado por anúncios, outdoors ou fachadas de lojas.
Flix Abellin faz as suas intervenções em postes, hidrantes, muros ou em locais mais discretos onde não costumamos pousar nosso olhar. “Eu quero deixar uma marca ao transformar espaços ignorados em marcos”, explica Abellin, que da sua maneira, faz referências à cultura ancestral em suas obras, como nos totens robóticos com fotos de cidadãos nativos, ou trazendo o característico traço geométrico ameríndio, além do uso frequente das cores amarela, azul e vermelha, cores do seu país.
Evocamos aqui a memória do mestre Higino Pimentel Tenório, educador e líder do povo Tuyuka, para que pensemos duplamente em como construímos ideias que nem sempre condizem com a verdade de cada povo. “Esses lugares foram onde elas perambularam, mulheres errantes, foram estragadas, andaram assim sem saber, namoravam com seres espirituais, espíritos das florestas... elas que fizeram esses desenhos” (apud CABALZAR, 2009).
Assim vemos que as semelhanças entre a arte rupestre e a arte urbana vão além do suporte em comum: paredes. Elas passam pelas diferentes mensagens, técnicas e pela relação dos indivíduos com o espaço no qual intervém. Porque acreditamos que, para além dos relatos de etnólogos e antropólogos, precisamos ouvir o que os povos originários têm a falar e a mostrar sobre esta prática ainda viva.
Quando perguntamos, lá no ínicio, quem era o artista, você imaginava algo como relatou mestre Higino?
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